quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Vão viver, sem viver em vão.

Né?


Maria era uma menina com uma beleza média. Cabelos médios, altura média, peso dentro da média, inteligência mediana, que usava para gravar os últimos sertanejos do momento, dançar quadradinho de oito e enviar na velocidade da luz seu nome para todas as festas mais badaladas. Maria usava chinelo havaianas e ficava até três dias sem lavar o cabelo, pegava ônibus para seu emprego que detestava e quando queria impressionar nas redes sociais digitava Caio Fernando Abreu no Pensador e postava com uma hashtag Cult. Maria nunca leun nada sobre o autor e acha que frases como “Eu cuido, corro atrás, peço desculpas, me importo, mas quando eu desisto, pode crer, meu desapego é pra sempre!” são dele. Maria nem sabe o que é desapego, acha que significa emprestar aquele shorts badalo para sua amiga.

 No instagram, Maria tem muitos seguidores. Está sempre linda e feliz, come sempre sushi e é focada na academia, bebe cerveja às sextas posta o look do dia. No Tinder Maria é interessante e descolada, no Whatsapp Maria é falante e inteligente, sempre tem assunto. Maria é incapaz de viver sem baseblushpórímel, sente falta de um cara que queira fazer sexo – sem ir embora no dia seguinte em busca de outro match – e é incapaz de manter um diálogo sagaz pessoalmente quando está sóbria. Maria não consegue olhar nos olhos, não sabe ter firmeza em um assunto se não pode pesquisar no Google e se esqueceu como é andar olhando pra frente e apreciando a paisagem. 

Maria se sente angustiada toda noite e não sabe porque. Por mais que Maria saia, faça sexo, ganhe likes, tenha suas ideias – que nem são suas – compartilhadas, todo dia vai dormir e acorda com essa sensação de vazio, um vazio inexplicável. Mas ainda assim acorda e faz as mesmas coisas todos os dias, porque Maria, tão #determinante e #focada tem medo de sair da própria bolha que criou para si. Só quero ser aceita, diz Maria, mas Maria, aceita por quem? Aceita para que? Maria queria que a vida da rede social fosse sua vida de verdade. Maria não sabe o que é ser social nem o que é vida de verdade.

 Maria é mais uma das milhões de pessoas que buscam na tecnologia a ‘realidade aumentada’, com cada vez mais velocidade e dinamismo para imitar o que deveríamos estar fazendo: nos socializando. Somos diversas Marias e Joãos cada vez mais solitários em busca de uma companhia refletida em um ícone que pisca. Queremos cada vez mais ser inseridos em círculos descolados só para colecionar egos, para no final das contas acabarmos sozinhos esperando mais uma nova mensagem, um novo like, um novo match. 

Se parece exagero, uma pesquisa do portal Huffington Post apontou que 48% das mulheres americanas preferiam ficar sem sexo do que ficar sem seu smartphone. E mais: 47% deixam o celular ao lado da cama para usá-lo assim que despertam. Despertar, aliás, é o que está faltando para as pessoas desse mundo: não busquem realidade aumentada através da tecnologia, ela está logo na sua frente, é só levantar os olhos. Ao invés de ver #sunset, que tal ver o por do sol numa praia? Invés de fazer pose para o #treino que tal dar uma corridinha na rua e chegar exausta e descabelada, como deve ser para quem realmente treina? Porque ao mesmo tempo que expomos tudo da nossa vida, nos encolhemos cada vez mais?

 Fiquei um tanto impressionada com o filme Her, onde o protagonista se apaixona por um sistema operacional, mas logo percebi que isso basicamente já existe: se o Iphone começar a fazer sexo e cafuné, digam Adeus para os relacionamentos humanos. Que mundão.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Uma história (i)real.

Eu ouvindo o Rio.


Antes de começar a contar essa história, preciso avisar que ela é uma história inventada. O que não significa que cada linha que escrevo aqui não seja real. Também preciso avisar que não sei contar histórias, e justamente por isso insisto em contá-las. Escrevo aqui com o coração.

Quem me contou essa história foi o rio. Ele sussurrou em meu ouvido enquanto estive deitada em cima de sua pedra, com as mãos mergulhadas em sua água gelada. 

Ele não soube me precisar há quanto tempo foi, porque o tempo para o rio é diferente do tempo para nós. A história começa com uma menina, chamada Indiferença, que aos dez anos foi abandonada pela mãe no leito do rio. Nessa época, seu nome era Luz, e foi justamente por conta dessa luz que irradiava que acabou na escuridão sem fim da mata vazia. Acontece que a mãe de Luz amava cegamente seu homem, que não aguentava competir com o brilho que vinha da menina, pedindo então para que a mãe escolhesse entre os dois. A mãe, cega de paixão, achou que não poderia viver sem o homem, e cedeu aos seus desejos. Assim, luz tornou-se indiferença, em nome de uma loucura de amor. 

A menina passou então a odiar o amor. Sozinha, sem saber o que fazer, entregou-se à natureza, e foi acolhida pelo rio, que a amou no primeiro instante que suas lágrimas salgadas se misturaram à sua doce água. Com o tempo, desaprendeu a ler e escrever, pois não precisava mais dos ensinamentos dos homens, apenas dos ensinamentos dos Deus da natureza. Conseguia da terra tudo que precisava, conhecia os animais, entregava-se ao rio. Também o amava, pois repudiava o amor dos homens somente. 

Dez anos se passaram e Indiferença cresceu. Tornou-se bela, com a pele morena do sol, longos cabelos encaracolados e um brilho no olhar que carregava de quando ainda era Luz. Passou a atrair homens de diversas idades, solteiros, casados, ricos e pobres, que iam até o rio para tentar encantar a Indiferença. Ela, que continuava odiando o amor, se deliciava em seduzi-los e depois abandoná-los, sumindo por entre o verde do mato e os deixando perdidos ao leito do rio, que quieto agradecia por cada homem que Indiferença acabava por dispensar. 

Até que um dia, aconteceu. Indiferença não conseguiu ficar imune, e ali mesmo no leito do rio se entregou, de corpo, alma, pele, paixão, desejo e amor. Se banhou em águas desconhecidas. Pela primeira vez, quis deixar a mata, o rio, o seu berço. Pela primeira vez na vida, Indiferença entendeu a mãe. 

 Porém, o rio, que sempre amou incondicionalmente a menina, que sempre a acolheu em suas águas calmas, não conseguiu aceitar. Em sua fúria, afogou a menina. Queria transformá-la em pedra, para que ali ficasse para sempre. Acontece, que as forças da natureza são sempre justas. Naquele dia, Indiferença morreu sim, mas não virou pedra, virou flor. A mais perfumada de todas. Um dia foi colhida e por um casal de namorados e teve suas pétalas jogadas na água do rio, que teve que suportar seu perfume enquanto assistia lentamente as pétalas viajarem por sua água até se perder no mar. Desde então, aquele rio nunca mais foi calmo, sua correnteza e forte, avassaladora, nem mesmo suas pedras ficam ali para sempre.

 - Por que? Lhe perguntei.

 - Para aprender, me disse ele. Nada agora fica preso em minhas águas, para que eu entenda que o amor tem que ser solto. Tem que fluir. Nosso maior erro é querer aprisioná-lo, fazer com que ele seja pedra. Por causa dessa nossa obsessão, acabamos por matá-lo. 

- E a mãe da menina?, voltei a questionar.

 - Não foi feliz, me disse o rio num sussurro. Ela também teve sua lição. Ela não queria aprisionar o amor, mas queria abdicar de tudo por causa dele. Abdicou de uma parte sua, de um pedaço seu no mundo, por causa de um amor. E agora vive só uma meia vida, procurando por Luz e achando Indiferença em todos os lugares. 

Fechei os olhos por um momento e pensei nas minhas próprias histórias. Por vezes, fui rio, por vezes, indiferença, por vezes, a mãe da menina. O que esqueci foi, de muitas vezes, ser eu mesma. Agradeci ao rio. Fiz uma concha com as mãos e bebi daquela água: queria que essa correnteza fluísse dentro de mim.