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A liberdade é um cachorro vira-lata - Millôr Fernandes |
Os de raça são todos iguais. Cara de um, focinho de outro.
Eles precisam de artigos de petshop de grife para manter a compostura. Só comem
comida com pedigree. Andam em bandos, sempre com uma trupe da mesma raça,
falando as mesmas coisas banais. Sempre o mesmo tom de latido, não mijam nem
pensam fora da caixa. Engomadinhos, são criados
em apartamentos caros na beira do mar. Pra manter seus músculos fortes e
o padrão da raça, correm no final de tarde, bebem água mineral e fogem da boêmia.
Só farejam cadelinhas com pedigree legítimo igual ao seu – mas como todo bom
cachorro, cruzam muito por aí. Voltam ao seu apartamento, se olham no espelho
orgulhosos do que veem, não se importam que são iguais ao da mesa raça. Postam
foto no instagram e vão dormir satisfeito por fazerem parte daquele quadrado
único.
Nascem de uma mistura, o que os fazem únicos. Alguns são
pequenos, outros grandes, pretos, brancos, pretos com brancos, pelo liso,
enrolado, sem pelo. Andam em grupo também, mas nenhum é igual ao outro. Ás
vezes comem algo com pedigree, outras se viram catando algo delicioso na
esquina. As esquinas, aliás, são sempre uma aventura: estão em todo canto da
cidade, alguns não tem casa, outros moram numa caixinha de papelão, muito
pequena para o tamanho das suas ideias. Boêmios, são da rua, dos bares, dos
botecos sem raça. Quase nunca ficam doentes, não tem medo da chuva, do sol
forte, são filhos do gueto. São
malandros, tem samba no pé, gingado no corpo, mandriões. Ás vezes olham a trupe
dos cães de raça passando por ali, e tiram sarro através de um uivado
esganiçado.
Tem os que nascem cheio de raça e caem na graça dos vira-latas.
Existem os que nascem sem eira nem beira e fazem tudo para caber dentro da
caixinha seleta. Uns são adestrados por natureza, outros fazem questão de se
adestrar e repetir tudo que mandam: faça assim, vista isso, seja aquilo, ouça
essa, não saia com aquela, prefira as poodles, aquela é só uma cadela. A cidade
é uma matilha, sábados a noite são uivantes, terminam com latidos estridentes,
alguns choram quietinhos no canto com o rabinho enfiado entre as pernas, outros
ladram, mas não mordem. Na segunda, alguns vão para seu canil, passam oito
horas por dia imaginando como é ser livre e correr na estrada quando bem
entender. Outros, tem a oportunidade de não precisar se desgastar num canil,
mas passam o dia presos em seus apartamentos se sentindo felizes porque são “livres”.
Os de raça, são sem graça. Sabemos sempre o que vem por aí.
Os sem raça definida se definem na sua variedade: a gente nunca espera o que
acontece depois. Não gostam de coleiras, mas podem andar sempre ao seu lado,
sem a necessidade de serem mandados. Uns, exibem orgulhosos seu pedigree, enquanto
outros, como eu, só querem seguir a minha filosofia vira-lata.
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