Para ler ao som de: Tú me acostumbraste - Caetano Veloso |
Chuva caia lá fora, música tocava em espanhol. Chuva caia em
espanhol, música tocava molhada aqui dentro.
Pingo da chuva, Tú me acostumbraste a todas esas cosas e agora não
estava mais aqui. Café aquecia meu coração e me fazia esquecer por alguns
segundos que era você quem preferia Caetano cantando em Espanhol, dias de chuva
no lugar dos dias de sol e que me fazia parar o que fosse para poder contemplar o momento mágico e único
do pó misturando-se com a água transformando o cheiro de nada em fumaça
perfumada. Minha fumaça era agora de cigarro e tinha o pigarro da garganta por
tudo que estava entalado e eu não quis dizer. Não disse porque preferia lembrar
de ti ajeitando a franja que atrapalhava a sua leitura. Não disse porque queria
sua risada tímida por saber que eu só fingia ler para poder te contemplar
secretamente. O que de tão secreto guardava tua mente quando sabia que eu no
fundo mentia sobre todas as coisas cultas que falava só pra te impressionar?
Completamente louca por ser tão contida, como conseguia você ter uma delicadeza
furiosa que transformava pequenos gestos em cenas de cinema que Almodóvar
jamais conseguiria retratar?
E agora só tenho o retrato esquecido na gaveta.
Era domingo. Chuva, voz, café, Almodóvar que eu nem gostava
e você em um lugar qualquer. Nos domingos, você sabe, enquanto eu mínguo, você
fazia alarde porque era seu dia preferido, dia de saudades, dizia você. Enquanto
eu reclamava você amava, amava amava amava até me sufocar entre as paredes da
casa, dizendo que já estava com saudades desses pequenos momentos e eu não
compreendia nada, te amava assustado e depois te deixava num canto sem entender
todo esse encanto que não acontece na segunda nem na terça, só aos domingos. E
veja só. Estou só. E assim eu entendo o
que você quis dizer. Não me lembro
quando você partiu – quando eu te mandei partir porque não entendia nada sobre
partilha – mas me recordo do seu sorriso mudo que me dizia tudo sem falar, e eu
que quis também me calar acabei transformando tudo o que era tão nosso em um
calo doido e doído que me emudece e não me deixa mudar daqui. Fim de domingo –
eu queria ser a saudade de alguém, mas a verdade é que sou eu quem morre de
saudades. De saudades de você.
Segundo post do grupo Escritores na Era do Compartilhamento. Leia também: Tati Argenta; Leca Lichacovski; Sâmela Faria; Jô Lima; Joany Talon; Nathalia Moraes; Ju Rodrigues; Tamyhe; Taciana Gaideski; Fernanda Probst.
Nenhum comentário:
Postar um comentário